Campus de Cornélio Procópio
Cornélio Procópio, 23 de julho de 2022
História: A literatura de Pedro I
Uma história que não vem na História

Que o proclamador da independência do Brasil foi D. Pedro I é mais do que sabido (pelo menos, não deve ter sido expurgado dos livros escolares da história pátria), mas que era possuidor de verve literária e jornalística nosso público (que não seja de estudiosos minuciosos de nossa História) provavelmente desconhece.

Pois é, Pedro I era um poeta razoável, que não perdia ocasião de versejar, especialmente sobre mulheres, e publicar nos jornais da época (o que não lhe era tão difícil, pois foi proprietário de um deles). Também era adepto de uma boa discussão jornalistica, o que ficará evidenciado por este texto de Assis Cintra.

D. Pedro I, Imperador do Brasil (Reconstituição mostra verdadeiro rosto de D. Pedro I com fratura no nariz)

D. Pedro I, Imperador do Brasil, boêmio incorrigível, músico, poeta, jornalista e grande mulherengo (Reconstituição mostra verdadeiro rosto de D. Pedro I com fratura no nariz)

A Literatura de Pedro I

Contam os analistas do primeiro reinado que Pedro I era um boêmio incorrigível. Arrebanhara na salsugemSalsugem – tudo indica que significa boemia, farra, gandaia. um punhado de amigos, que o acompanhavam alegremente nas serenatas e regabofesRegabofe – festança; festa repleta de comida e de bebidas. noturnos, muitas vezes terminados em pancadaria grossa, da qual nem sempre escapava o próprio príncipe, quando os adversários eram valentes e ágeis.

Músico e poeta, a qualquer pretexto o primeiro imperador musicava e poetava. Porém, onde mais se inspirava o seu estroEstro – entusiasmo artístico, gênio criador. era na perda ou aquisição de mulheres. De sua versalhada esparsa aí pelos arquivos particulares, em originais ou cópias, o investigador poderá aproveitar muita coisa para o aspecto boêmio ou literário do "herói do Ipiranga".

Na célebre viagem a S. Paulo, o príncipe foi informado dum crime emocionante: "uma formosa paulista, de conceituada família, esquecera-se de seus deveres conjugais e perdera-se de amores por um certo rapagão. O marido, o alferes Felício Pinto, num impulso de revide, esfaqueou impiedosamente a adúltera. A justiça providenciou com energia, pois a vítima era irmã de um alferes da Guarda do Príncipe. Chamava-se a bela – "Domitila de Castro". Mais tarde seria a "senhora marquesa de Santos" que, com um simples "muxoxo", poria o sábio José Bonifácio no desagrado do Paço, e, em seguimento, na amargura dum exílio.

Domitila de Castro Canto e Melo, Marquesa de Santos

Domitila de Castro Canto e Melo, Marquesa de Santos (São Paulo, 27 de dezembro de 1797 — São Paulo, 3 de novembro de 1867)

Levado pela curiosidade, quis D. Pedro visitar a famosa Domitila, então na residência do coronel Castro, seu pai. Com um sorriso de mulher bonita, a adúltera conquistou o coração do príncipe, onde espumejava o sangue turbulento da sensual dinastia bragantina. Representada a cena do Ipiranga, D. Pedro, já perdido de amores pela fascinante flor dos Castros, e indignado com a maledicência das matronasMatrona – mulher de idade madura, respeitável pela idade e pelo procedimento. paulistanas que censuravam acremente a adúltera, cavalgou PégasoPégaso – na mitologia grega, é um cavalo alado símbolo da imortalidade. e no ParnasoParnaso – Monte da antiga Grécia, consagrado a Apolo e às musas. pediu às musas a inspiração para um soneto à aviltada. E assim, com a sua própria letra, versejou:

DOMITILA

Filha dos Césares, Imperatriz Augusta,
Tu abateste altiva soberbia,
Com que tuas damas da raça ímpia
Abater queriam quem delas não se assusta.

Vede aristocratas cafresCafre – [figurado] indivíduo rude, ignorante. quanto custa,
Espezinhar aquela cuja alegria,
Consiste em amar a Pedro e a Maria,
Titilia bela, a tua causa é justa.

O mérito, a verdade em todos os países,
Apareceram sempre em grande esplendor,
Sustentem-nos os soberanos: são suas raízes.

Conta com Pedro, pois ele é o defensor
Do pobre, do rico, do Brasil, dos infelizes,
Ama a justiça, dos seus amigos é vingador.

Assim poetando, D. Pedro escreveu estas linhas a sua amada:

"Domitila, minha Imperatriz do coração, desde que pus meus olhos na tua formosura, quis ser todo e sempre teu.

Queres, divina Augusta de meu pensamento? É para ti esses versos, meu Amor. - Pedro."

O resultado foi este, que o circunspecto conselheiro Vasconcelos Drumond contou em suas "Memórias".

"O Imperador mandou vir de São Paulo uma mulher que lá havia conhecido, depois de ser ela já conhecida de um criado particular seu, e se ia apaixonando tão vivamente que deixava já entrever os escândalos de que essa mulher foi depois a causa no Paço e na Corte."

Há outros versos de D. Pedro, dedicados à amante. Quanto à virtuosa Imperatriz Leopoldina, todo mundo sabe que era desprezada e maltratada pelo imperial consorte. Contudo, quando Deus na sua infinita misericórdia quis que a pobre abandonada, a santa Imperatriz, partisse na viagem derradeira, D. Pedro, quiçá mordido pelo remorso, pranteou a falecida neste soneto de sua lavra:

LEOPOLDINA

Deus eterno por que me arrebatastes
A minha muito amada Imperatriz?!
Tua divina bondade assim o quis.
Sabe que o meu coração dilacerastes?!

Tu decerto contra mim te iraste,
Eu não sei o motivo, nem que fiz.
E por isso direi como o que me diz:
Tu ma deste, senhor, tu ma tiraste.

Ela me amava com o maior amor
Eu nela admirava a honestidade
Sinto meu coração por fim quebrar de dor.

O mundo nunca mais verá em outra idade
Um modelo tão perfeito e tão melhor,
Da honra, candura, bonomia e caridade.

Maria Leopoldina da Áustria, 1ª Imperatriz do Brasil

Maria Leopoldina da Áustria, nascida Leopoldine Caroline Josepha von Habsburg-Lothringen, 1ª Imperatriz do Brasil (Viena, 22 de janeiro de 1797 — Rio de Janeiro, 11 de dezembro de 1826)

Morta a Imperatriz, já se preparava D. Pedro para desposas a marquesa de Santos quando os horizontes políticos escureceram, ameaçando a tormenta.

O marquês de Aracati declarou peremptoriamente: — "Vossa Majestade, se persistir nesse intento perde a coroa, sem esperanças de recuperar a de Portugal, e com a coroa, a amizade dos soberanos da Europa. Vossa Majestade arrisca a herança de seus pais, e o patrimônio de seus filhos".

Coube ao visconde de Cairu e ao marquês de Barbacena a tarefa árdua de convencer D. Pedro a procurar esposa nas casas reais. E assim tivemos a segunda Imperatriz – D. Amélia.

Amélia de Leuchtenberg, 2ª Imperatriz do Brasil

Amélia de Leuchtenberg, nascida Amélie Auguste Eugénie Napoléone de Beauharnais, 2ª Imperatriz do Brasil. (Milão, 31 de julho de 1812 — Lisboa, 26 de janeiro de 1873)

O Imperador, ao recebê-la, deu rédeas a Pégaso e versejou como de costume:

AMÉLIA

Aquela que orna o Solo Majestoso,
É filha de uma Vênus e de um Marte,
Enleia nossas almas e desta arte
Oh! mimo do Brasil, glória do Esposo.

Não temeu o Oceano proceloso.
Cantando espalharei por toda a parte.
Seus lares deixa Amélia por amar-te.
És mui feliz, ó Pedro, és mui ditoso!

Amélia fez nascer a idade de ouro!
Amélia no Brasil é nova diva!
É Amélia de Pedro um grã tesouro!

Amélia Augusta os corações cativa!
Amélia nos garante excelso agouroAgouro – predição a respeito do futuro.!
Viva a Imperatriz Amélia, Viva!

Este soneto, quando não tivesse o mérito da metrificação, tinha o da sinceridade. D. Amélia, filha de Eugênio de Beauharnais, neta da encantadora Josefina (primeira mulher de Napoleão), era simplesmente linda e cativante na sua florida mocidade. E de tal modo soube encantar o irrequieto D. Pedro, que o transformou completamente, até na cara, porque depois do segundo casamento o Imperador deixou crescer a barba, ficando um solene "barbaça".

"A verdade é que (quem o diz é Aracati), a verdade é que com a vinda da formosa D. Amélia, a marquesa de Santos aprontou a trouxa e... voltou para S. Paulo, onde se casou com o brigadeiro Rafael Tobias de Aguiar, riquíssimo chefe dos liberais."

E foi feliz... Mais feliz que antes?

Talvez sim, talvez não...

* * *

Para quem se afez ao manuseio de jornais, panfletos e papéis desse tempo, não é novidade o que para os leigos é uma revelação — "Pedro I foi jornalista".

O primeiro imperador apreciava doidamente as polêmicas jornalísticas. E mesmo as provocava, nelas se imiscuindo com o pseudônimo de "Ultra-Brasileiro" e "P. patriota".

O "Diário Fluminense", que na política brasileira teve tão importante papel representou no fim da 3ª década do século passado, tendo como testa de ferro, o português João Loureiro, foi a sua arena de gladiador plumitivoPlumitivo – [pejorativo] escritor ou jornalista sem méritos..

O famoso primogênito carlotinoCarlotino – referência a sua mãe, D. Carlota Joaquina. escrevia mal, léxica e sintaticamente, mas o que escrevia passava pelo "crivo" de outros mais sabidos, geralmente os seus secretários ou o redator do jornal onde colaborava. Muitas vezes o imperante empregava termos e frases com acentuados laivos de grosseria, e, arrependido, logo depois se retratava. Haja vista a proclamação de 12 de novembro de 1822, por ele redigida, em que se vê um qualificativo grosseiro referente a José Bonifácio, então longe das graças imperiais. Caindo em si, advertido pela esposa, no dia seguinte subscreveu novo manifesto, desta vez em forma de explicação, retratando-se com restrições esquisitas.

O jornal "Diário Fluminense", que era de sua propriedade, apresentou artigos sabidamente da sua lavraLavra – autoria.. Nem segredo havia quanto ao dono de tais escritos, pois o imperador era o primeiro a se vangloriar do que publicava.

João Loureiro, diretor "in-nomine""In-nomine" [latim] – só em nome, mas não efetivamente. do "Diário Fluminense", em carta, já publicada em parte pelo ilustre patrício Dr. Alberto Rangel, no livro "Marquesa de Santos", proclamava a colaboração literário-política de Pedro I, no seguinte tópico:

"Os únicos artigos que vieram no 'Diário Fluminense' eram da pena do Imperador, que escreve com muita vanglóriaVanglória – convencimento, nem sempre fundamentado na realidade, dos próprios méritos, qualidades ou talentos., e a miúdo, e guarda um anônimo, 'de que se gaba'."

Amostra do jornalismo de Pedro I é o artigo seguinte, impresso na oficina do "Diário Fluminense", com o pseudônimo de "P. Ultra-Patriota".

— "O Imperador tem muita paciência com toda essa gente. Ele tem feito tudo pelo Brasil e este nada por ele. O que significa essa oposição, ó Fluminenses? Sossego, ó Brasileiros, que os lobos vestidos de cordeiros, os anarquistas republicanos, querem turvar as águas para devorar os inocentes. Perdestes a razão? Onde estais que não vedes a loucura de falar de vosso imperador? Ele é justo e defensor dos fracos e amigo dos amigos. Ingratos! Quem fez a vossa independência? Falais em Maçonaria? Mas ela conspirou até 1822 sem poder fazer nada, e se quis alguma coisa foi preciso recorrer a D. Pedro, e sem ele nada se faria. Quem fez a Assembleia Constituinte? Foi o imperador D. Pedro, contra a vontade de seus próprios ministros e do seu próprio pai. Nem a Maçonaria, nem o Ledo, nem o Clemente, nem o Andrada, nem ninguém seria capaz de fazer o que o imperador, que é brasileiro de coração, sinceramente quis fazer. Se ele quisesse, ainda éreis quem fostes. A Maçonaria sem D. Pedro era o Nada. Ó Fluminenses, ó Brasileiros patriotas, rememorai o sucedido e vide se há razão para se atacar o príncipe que quebrou os grilhões da Pátria que é nossa. Rememorai e vereis a verdade que anarquistas, republicanos, perversos e retrógrados, pretendem agora esconder, conspirando em conventículosConventículo – reunião clandestina ou secreta em que pessoas se juntam para conspirarem. malditos por Deus e pela lei nas desorasDesoras – muito tarde, geralmente a altas horas da noite; demasiado tarde. da noite. Se acompanhardes esses lobos, ó Brasileiros, não conteis mais com o Imperador. "Lá do outro lado do mar, há um glorioso povo que muito o quer e que muito o chama. E se o perderdes, e se ele partir, ai do Brasil nas garras dos anarquistas republicanos! Pobre Brasil! É tempo de ter juízo."

Aí ficou a amostra de Pedro I, jornalista. Outra, é este passoPasso – episódio ou parte de uma obra literária ou de outro texto ou discurso. subscrito por "P. Patriota", pseudônimo imperial:

"Quem poupa os inimigos nas mãos lhe morre*Provérbio popular português.. Aí estão os Andradas, com o velho 'Sábio' na frente. Cuidado com este, Fluminenses! Ele não fez a Independência, como vivem a bazofiar os seus amigos. Foi o imperador com o Ledo e o Clemente da maçonaria, foi o Grande Oriente, do qual ele, depois de ter sido Grão Mestre, foi inimigo. O velho Andrada acompanhou a onda. D. Pedro perdoou-lhe. Ele veio, a agitação começou, o mar está bravo, mas se fizer conspiração como em 1823, a lei e o imperador serão inexoráveis, sem piedade para 'Ninguém'."

Era, como se vê, um grito de medo pelo retorno de José Bonifácio à pátria amada. Mais tarde, depois do 7 de abril de 1831, o sábio Andrada conspirou, porém em favor de Pedro I, sentando no banco dos réus por desejar o retorno ao trono do ex-imperador.

Algum tempo depois de ter chegado ao Brasil, Bonifácio, à noite, em companhia de seus amigos Vasconcelos, Belchior e Rocha Filho, discutiam literatura na casa do primeiro deles, em que se hospedava o sábio Andrada. Pedro I, recebendo uma denúncia anônima de que se conspirava em casa de Vasconcelos, cercou o prédio, à frente de 10 homens de sua Guarda.

Furioso, entre injúrias e exclamações, mandou prender os presentes, arrecadando uma pasta de papéis que supunha ser a correspondência e os projetos dos conspiradores. De repente, o seu capanga "Chalaça" fixou os olhos num grande armário, chamando a atenção do imperador para esse móvel:

"Que ali tinha algo de importância, pois Vasconcelos, aflito, não despregara os olhos do armário."

Todos se precipitaram para lá, trêmulos de emoção. Seria certamente o "arquivo" completo dos conspiradores ou então algum dos cabeças que ali se ocultara?

"Chalaça" entreabriu o armário e recuou subitamente, deixando a porta semicerrada.

— "Que era gente, talvez o chefe militar. Vira bem a farda e o boné."

Foi um reboliço. Pedro I, de espada em punho, avançou intimoratamenteIntimoratamente – de modo destemido; sem temor; que age de modo corajoso e valente.:

"Que se rendesse o rebelde, o anarquista, pois quem falava era o imperador. Que saísse já e já."

Recuou. Os companheiros, de espada ou pistola em punho, esperavam a saída do provável brigadeiro-conspirador.

Então o armário se moveu, as portas se abriram e um pequeno vulto saltou para fora: trêmula, com as pernas molhadas de água saída da bexiga, olhos esbugalhados, gaguejante, uma pretinha balbuciou:

— "Ah! Sinhôzinho! Não me mate..."

E rolou pelo chão aos soluços.

Era uma pequena escrava do dono da casa.

Estrondeou uma gargalhada homérica: Pedro I, de mãos na barriga, congestionado, lacrimoso, riu-se com esse riso português que se assemelha ao ribombar das trovoadas tropicais.

Deixando em paz os pseudo-conspiradores, ele mesmo contou o caso num "artiguete" humorístico, publicado cinco dias depois, com a assinatura de "Ultra-Brasileiro". E procurando ridicularizar, nesse artigo, o sábio Andrada, terminava assim:

"O intendente da polícia está satisfeito: provou ao imperador que os conspiradores, inclusive o 'Grande sábio das Arábias', não conspiraram mais, como antigamente, com o 'bode preto'; o símbolo agora, é uma 'bodinha preta'.

Histórias que não vem na História

Histórias que não vêm na História, de Assis Cintra, 1928

é um livro publicado pelo jornalista e escritor Francisco de Assis Cintra, em 1928, pela Cia. Editora Nacional, em que se propunha a divulgar acontecimentos históricos ou relacionados com a história oficial do Brasil, mas que haviam sido apresentados de maneira distorcida ou intencionalmente omitidos para se adequar ao pensamento e interesse do governante da época. Realizou pesquisa minuciosa e acurada ao longo dos anos e publicou os resultados, esporadicamente, nos vários jornais em que colaborou.

Este foi o último livro do autor, que se afastou das Letras, por alguns anos, para se dedicar a misteres mais proveitosos. Retornou para as lides jornalísticas por mais alguns anos. Assis Cintra publicou cerca de 50 livros em oito anos.

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